"Narcocídio": O que é o novo tipo de crime discutido pelo Congresso
Por Tribuna Foz dia em Notícias
"Narcocídio": O que é o novo tipo de crime discutido pelo Congresso
Texto prevê pena de até 30 anos para homicídios ou lesões corporais cometidos durante disputas por território, ou cobranças de dívidas do tráfico de drogas
A CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado aprovou o projeto que cria o crime de "narcocídio". Juristas ouvidos pelo UOL alertam que a proposta pode violar princípios constitucionais, além de ser redundante e ineficaz contra a violência do tráfico.
O que é "narcocídio" e o que mudaria?
O texto prevê pena de até 30 anos para homicídios ou lesões corporais cometidos durante disputas por território, ou cobranças de dívidas do tráfico de drogas. A proposta é de autoria do senador Jayme Campos (União-MT) e teve relatoria de Sergio Moro (União-PR), que incluiu emendas para endurecer as punições. A matéria segue agora para análise na Câmara dos Deputados, salvo se houver recurso para votação no plenário.
Batizado de "narcocídio", o novo tipo penal abrange crimes cometidos para garantir o êxito, o lucro ou a continuidade da atividade de tráfico. Também foi incluída a figura da "coação criminosa no tráfico", com penas que variam de 4 a 30 anos, dependendo do resultado da violência. O projeto ainda propõe classificar essas condutas como crimes hediondos.
Hoje, homicídios cometidos no contexto do tráfico podem ser enquadrados como homicídio qualificado por motivo torpe, com penas de 12 a 30 anos. Lesões corporais, por sua vez, são punidas conforme a gravidade, e casos de coação são analisados à luz de dispositivos como constrangimento ilegal, ameaça ou coação. Com o novo tipo penal, essas condutas passariam a ser tratadas como "narcocídio", com pena mínima de 20 anos —mesmo nos casos em que antes não se aplicava punição tão severa.
Juristas ouvidos pelo UOL apontam que a proposta é desnecessária, fere princípios constitucionais e pode agravar a crise carcerária sem efeitos concretos no combate à violência. A prática forense já lida com esses casos com os instrumentos disponíveis, afirma o advogado criminalista Guilherme Gama.
A motivação ligada ao tráfico, como cobrança de dívida ou disputa territorial, já é considerada como agravante nos tribunais. Criar um novo tipo penal promove uma duplicidade normativa que alimenta a ilusão de resposta imediata, típica do populismo penal segundo Guilherme Gama, advogado criminalista.
Para Gama, a proposta ignora a estrutura jurídica já existente. "A criação de novos delitos com penas altas tende a ter mais apelo político do que efetividade prática. Na realidade, essa medida amplia a base da população carcerária, atingindo majoritariamente jovens pobres das periferias, sem desarticular estruturas criminosas complexas."
A advogada Jenifer Moraes, doutoranda em direito penal pela Universidade de Salamanca, vê no projeto um erro conceitual. "Trata-se de uma figura penal que já existe sob outras nomenclaturas. É uma proposta redundante, populista e que não oferece qualquer impacto preventivo real. A resposta legislativa é fácil, mas inócua. É uma cortina de fumaça."
Jenifer sustenta que a conduta descrita no projeto já está prevista como lesão corporal seguida de morte. "O que eles estão chamando de 'narcocídio' é, na verdade, uma lesão corporal qualificada pela morte, algo que já existe no Código Penal. A diferença está apenas na pena exagerada atribuída, que rompe com o princípio da proporcionalidade."
"Linguagem é vaga"
A professora Fernanda Garcia Escane, doutora em direito constitucional e docente da Escola Paulista de Direito (EPD) e da FMU, alerta que o projeto pode violar princípios constitucionais como a proporcionalidade e a individualização da pena. Embora reconheça que o texto respeita formalmente o princípio da legalidade, ela afirma que há falhas no conteúdo. "A linguagem usada —'garantir o êxito do tráfico', 'preservar a continuidade'— parece objetiva, mas é juridicamente vaga. Isso abre margem para enquadramentos excessivamente amplos, sobretudo em contextos urbanos complexos, onde a motivação do crime pode ser múltipla."
Ela também critica a guinada punitivista da proposta e vê risco de afronta aos fundamentos do Estado Democrático de Direito. "Projetos como esse expressam uma política criminal de endurecimento, mas não oferecem, sozinhos, qualquer garantia de eficácia. A história mostra que o encarceramento em massa tende a reforçar ciclos de exclusão, não a resolvê-los."
Para Fernanda, a proposta erra ao tratar o aumento de pena como solução única para a criminalidade. "A perspectiva punitivista, por si só, nunca foi e nem será solução. A criminalidade é um fenômeno multifatorial, que exige políticas públicas, reintegração social e mecanismos de controle eficientes —não apenas penas simbólicas elevadas."
O que dizem o autor e o relator
O relator diz que o projeto é "o meio mais eficaz para combater a violência inerente ao mundo das drogas". "A essência do projeto é criar esse novo tipo penal, o narcocídio, que é o assassinato vinculado ao tráfico de drogas. É extremamente meritório", disse Moro à Agência Senado.
O senador Jayme Campos disse à Agência Senado que a proposta surgiu de grupo de juízes de Mato Grosso que atuam na área criminal. "Estamos numa região que tem 700 quilômetros de fronteira seca: Brasil e Bolívia. Lá, talvez, por falta de conhecimento, de informação, o crime aumentou sobremaneira. Ali é o maior corredor de entrada do tráfico. O projeto tem o objetivo maior de tipificar o narcocídio."
Fonte: UOL
